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  • Foto do escritorFlávio Lira

Contextualizando a Ucrânia - e fugindo de explicações fáceis demais

Por Flávio Lira


O atual conflito na Ucrânia, iniciado com a invasão das forças russas em 24 de fevereiro de 2022, segue impressionando o mundo. Ataques bem coordenados, avanços graduais e bem-sucedidos das forças de Moscou, contínua resistência local, inconstância (seguida de certa constância) das ações ocidentais; todos estes elementos cooperam para fazer deste evento (seguramente já um marco do século XXI) algo dinâmico, multifacetado e, se não tomarmos cuidado, também confuso e repleto de informações incompletas.


É importante entendermos a atual situação buscando o máximo de elementos ao nosso alcance, mas também devemos ter cuidado para não nos sobrecarregarmos de informações. Nesta postagem, vamos resumidamente contextualizar a Ucrânia a partir de pontos que consideramos chave no tocante tanto à sua história quanto à atual geopolítica que a engloba e, ao final, daremos sugestões sobre como filtrar as informações recebidas para que não fiquemos, além de estafados, também cada vez mais indiferentes ao conflito, o que é sempre muito perigoso e, infelizmente, bastante comum.


Ucrânia – entre auge e impérios


O que hoje conhecemos como Ucrânia é um território que descende do antigo Rus’ de Kiev, uma organização sociopolítica que existiu entre os séculos X e XIII e que representou um dos auges culturais, econômicos e militares da Europa Medieval. A sociedade no Rus’ de Kiev era uma mescla de populações nórdicas e eslavas. Com o passar do tempo, cultural e geopoliticamente, o Rus’ de Kiev também teve muitas interações com o Império Bizantino (o que contribuiu para que o cristianismo ortodoxo se desenvolvesse naquelas terras) e com a Polônia-Lituânia (a partir da qual se estabeleceu também uma cultura política católica). No século XIII, a região foi invadida pelos mongóis, que ali exerceriam seu poder até o fim do século XV, em um período que trouxe tanto uma relativa estabilidade local quanto a solidificação de diferenças importantes entre os que mais tarde se tornariam os povos russo e ucraniano (além dos bielo-russos). Neste intervalo, houve um forte desenvolvimento religioso e cultural no território, mas Kiev, que atingira seu auge durante o Rus’, começa, a partir do século XIII, a perder primazia perante a Moscóvia (ou Moscou), outra localidade importante na região e que mais tarde daria origem à Rússia.


O Grão-Ducado (ou Principado) da Moscóvia (ou Moscou) viria a angariar cada vez mais poder e, com a subida da dinastia Romanov ao trono em 1613, surge a figura do czar (termo que vem da palavra “César”, uma alusão aos imperadores romanos, em especial àqueles que defendiam a fé cristã). A partir daí, surge o Czarato da Rússia (ou Czarato da Moscóvia), que, em 1721, evolui para o Império Russo, o qual gradativamente absorverá territórios ucranianos que ou haviam sido domínios da Polônia-Lituânia ou haviam gozado de certa autonomia sob os cossacos, um grupo sociopolítico com origem nas estepes e com fortes tradições militares. O atual território ucraniano faria largamente parte do Império Russo a partir daí, chegando a ser chamado, inclusive, de “Pequena Rússia” (termo hoje considerado pejorativo por boa parte dos ucranianos).


Após a Revolução Russa de 1917, a Ucrânia foi uma das repúblicas fundadoras e componentes da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), que contaria com outros 14 entes. Desta forma, na URSS, existia a República Socialista Soviética da Ucrânia, a República Socialista Soviética da Rússia, a República Socialista Soviética de Belarus, e assim por diante. Em 1954, o líder soviético Nikita Krushov transfere a Crimeia (uma península ora sob administração russa, ora (semi)autônoma), que dava para o Mar Negro, para a República Socialista Soviética da Ucrânia, citando maiores ligações geográficas, econômicas e culturais da localidade com a Ucrânia quando comparada com a Rússia. Na época, isto não teve efeitos geopolíticos maiores, pois tudo ainda se mantinha dentro da União Soviética.


Porém, no fim de 1991, a União Soviética chega ao fim após um período de reformas econômicas, políticas e administrativas que não foram capazes de salvá-la. Após sua dissolução, cada uma das 15 repúblicas que compunham a União Soviética (dentre elas a Ucrânia) agora se encontrava como um estado independente. O processo foi (e segue sendo) árduo para vários desses países, visto que a transição de uma economia planificada, altamente controlada pelo estado, para uma economia de mercado causou uma série de choques e de traumas. É justamente neste período que se tem o surgimento dos oligarcas, o fortalecimento das máfias, a crise dos serviços de assistência social – e a busca, por vários desses países, de uma renovada identidade nacional.


Voltando à Ucrânia, assim que ela se torna um país independente, ao fim de 1991, ela imediatamente herda três elementos que tornam sua existência uma “questão estratégica” de monta para a Europa e para o mundo: o arsenal nuclear, a Crimeia, e os dutos de hidrocarbonetos.


O arsenal nuclear foi um ponto sensível logo no início da década de 1990. A Ucrânia contava, naquele momento, com o terceiro maior arsenal nuclear do mundo (lembremos que, quando essas armas foram colocadas lá, a Ucrânia ainda fazia parte da União Soviética e não se aventava a possibilidade de que esta um dia se desintegraria). Após um bem-sucedido processo de negociação, é assinado o Memorando de Budapeste, através do qual a Ucrânia aceita se desnuclearizar em troca do respeito à sua integridade territorial no futuro. Os signatários do memorando foram Belarus, Cazaquistão, Ucrânia (três jovens estados que haviam herdado armamentos nucleares da antiga União Soviética), além de Rússia, Estados Unidos e Reino Unido. A assinatura deste documento é de grande relevância pois não somente significou a desnuclearização da Ucrânia como também criou a obrigação legal de que três potências (a dizer, Rússia, Reino Unido e Estados Unidos) respeitassem a soberania de seu território.


A Crimeia foi o segundo elemento de contenda que viria a se tornar o epicentro de uma grande crise em 2014. Como vimos, em 1954, o líder soviético Nikita Krushov havia concedido a península à República Socialista Soviética da Ucrânia (em uma época em que não se pensava que a União Soviética acabaria um dia). Um ponto importante a se levantar é que, dentro da Crimeia, desde a segunda metade do século XVIII (ou seja, bem antes da URSS), desenvolveu-se a Frota do Mar Negro, uma base naval, primeiramente, do Império Russo, em seguida da União Soviética e, depois, da Federação Russa. Ou seja, essa poderosa frota, ainda que localizada na Crimeia (território da Ucrânia), mesmo após a dissolução soviética, continuou pertencente à Rússia, o que significa que Moscou manteve um “exclave militar” no território ucraniano independente.


Em 2014, após movimentações por parte da sociedade ucraniana pedindo maior aproximação de instituições ocidentais, como OTAN e União Europeia (organizações que têm uma postura tradicionalmente arredia à Rússia), cresce a tensão regional e, após um referendo (controverso) ocorrido na Crimeia em março de 2014, a Rússia reconhece a península como parte integrante do seu território. Ucrânia e seus aliados ocidentais veem a anexação como ilegal. Em 2015, agudiza-se a ação de movimentos separatistas na região de Donbas (onde ficam Donetsk e Luhansk).


É importante frisar que este recrudescimento da atuação russa ocorre em um momento percebido por Moscou como de avanço de instituições ocidentais (particularmente a OTAN) em direção ao leste da Europa, o que é visto como ameaçador para o Kremlin. Soma-se a isto o fato de que a política interna ucraniana se tornou caleidoscópica após sua independência e, nos últimos anos, verifica-se um crescimento significativo, no espectro político "pró-ocidental" do país, de elementos de extrema-direita, com fortes ligações com grupos paramilitares que recebem salvo-conduto do governo ucraniano para seguir "defendendo" o país das ameaças separatistas e russas. Estes são os elementos aos quais o Kremlin alude para justificar sua intervenção militar (“desarmar e desnazificar a Ucrânia”, nas palavras de Vladimir Putin). A isso voltaremos em outras postagens.


Por fim, a questão dos dutos. Quase 40 mil quilômetros de gasodutos cortam a Ucrânia, ligando, em larga escala, a Rússia (grande produtora de gás natural e petróleo) à Europa Central e Ocidental. Isto garante à Ucrânia uma posição estratégica como intermediária na logística de distribuição desses produtos, em especial gás natural, mas também a põe em uma situação vulnerável, dado que ela também consome o gás natural russo (importante para sua economia e, em especial, para o aquecimento nos meses de inverno), sendo um país cujo controle energético é capaz de privar os consumidores europeus centrais e ocidentais do acesso a este produto. No fim das contas, ter uma grande malha dutoviária não necessariamente confere à Ucrânia grandes vantagens na Europa, pois isso a submete a uma lógica energética que a põe entre dois blocos geopolíticos e econômicos poderosos: Europa Centro-Ocidental (grande consumidora de gás natural) e Rússia (grande fornecedora de gás natural), sem muitas possibilidades de Kiev estabelecer os termos dessa troca.


Após apresentarmos os pontos acima de forma resumida, podemos entender melhor o porquê da Ucrânia seguir como um país tão estratégico. O conflito que atualmente a vitima tem raízes históricas e geopolíticas que não podemos perder de vista, especialmente quando falamos dos interesses das potências que enxergam o território ucraniano como um palco para o avanço de suas pautas. Além da grande propensão a conflitos, isto traz o triste efeito colateral de não se considerar o povo ucraniano como um ator de direito, relegando suas aspirações, experiências e visões de mundo a um patamar secundário, sendo que estes elementos são trazidos à tona por muitas potências (sob o manto de “autodeterminação nacional”) na medida em que isto se coaduna com seus interesses econômicos, políticos e militares. Isto prende, infelizmente, algumas análises sobre a guerra na Ucrânia na lógica pendular dos interesses das grandes potências, o que, embora seja um elemento crucial para se entender o que está acontecendo, não faz jus completamente à história, às idiossincrasias, aos anseios e às possibilidades de um futuro pacífico almejado pela maioria dos ucranianos.


Lidando com a enxurrada de informações


Com um conflito complexo e com tantas informações chegando a todo momento, como ficar bem-informado e evitar o “burnout” (e, ainda mais arriscado, consequente indiferença) em relação à Ucrânia? Primeiro, devemos partir da ideia de que toda narrativa tem dois lados (no mínimo dois lados), o que não nos impede de criticar qualquer um desses lados (ou então ambos). A narrativa vinda das autoridades russas tende a frisar o avanço da OTAN para o leste como ameaçador e o aumento de grupos políticos e paramilitares anti-Rússia em território ucraniano como algo perigoso e alarmante, o que deve ser combatido para garantir a estabilidade na Rússia e na Europa Oriental. Em contrapartida, a narrativa ocidental tende a se focar na agressividade russa como uma tentativa de “retorno” ao poderio soviético ou russo imperial, resultado de um mal resolvido processamento da perda da influência internacional de Moscou após o fim da Guerra Fria. Neste contexto, os países ocidentais estariam justificados em se blindarem contra os avanços russos e, acima de tudo, os países da Europa Central e Oriental teriam razão no seu desejo de firmarem acordos com instituições ocidentais (como União Europeia e OTAN), dado que são juridicamente independentes e têm sido vítimas históricas do imperialismo russo.


Sabendo da existência, no mínimo, dos dois lados introdutoriamente expostos acima, é importante acompanharmos os pronunciamentos das lideranças ucranianas, ocidentais e russas e analisarmos o quanto elas trazem de uma visão de futuro para a Ucrânia. Isto é, além de fazerem referência ao conflito atual, o quanto esses documentos/discursos oficiais apontam para como a Ucrânia deve ser configurada no futuro, em especial quando cessarem as hostilidades? Aqui já enxergamos alguns fatores problemáticos: tanto para o lado russo quanto para o lado ocidental, dificilmente se encontram menções sérias à participação ativa da sociedade ucraniana para pensar um futuro para si própria. Mais uma vez, a Ucrânia é um objeto no discurso binário Ocidente-Rússia e não um sujeito em suas próprias complexidades (e capacidades) político-sociais.


Por fim, em relação às informações que recebemos, é importante manejarmos o nosso tempo. Acompanhar notícias internacionais é um trabalho constante e cansativo, ainda mais quando um conflito está se desenrolando, e devemos ter cuidado e buscar distanciamento para enxergarmos tudo com a maior clareza possível, sabendo que todo veículo de comunicação tem algum viés. Isto não é em si um problema – só se torna um problema quando esse veículo de comunicação ou não informa esse viés e/ou defende que é 100% isento. Como seres humanos, não conseguimos ser totalmente imparciais quando há valores envolvidos. Reconheçamos nossas premissas, não nos pintemos de isentões e tentemos reconhecer os pressupostos de quem nos informa (o que nem sempre é fácil).


Para quem tem um pouco mais de tempo, é sempre bom começar com leituras históricas sobre a região, sobre as sociedades envolvidas, sobre a geopolítica global e local, sejam livros, artigos ou análises de conjuntura. Para os que tiverem menos tempo, ajuda muito uma boa seleção de jornais/canais/podcasts mais sérios e analíticos e que não passam a vida a fazer uso de frases e pseudoexplicações de efeito (como falar da “defesa da democracia” de maneira descontextualizada ou da “dominação ocidental” de forma simplista). Desta maneira, é importante lermos/ouvirmos analistas e jornalistas que, já no começo, partam do quão complexo o conflito é, assumam as dificuldades de se fazer uma análise em tempo real e ressaltem a miríade de interesses geopolíticos presentes na atual situação enfrentada pelos ucranianos. Desta forma, nossas opiniões serão não apenas mais embasadas, mas também mais justas, sabendo que diferentes premissas (ou pontos de partida) justificam diferentes ações (razão pela qual é tão difícil conciliar o discurso russo e o discurso ocidental neste momento).


Neste blog, esperamos contribuir com análises e exposições que reflitam não somente a complexidade do conflito, ajudando a elucidá-lo da melhor maneira possível, mas o quão interessante esta região é, em seu passado, presente e (por que não?) futuro. Apesar da triste invasão à qual a Ucrânia está atualmente submetida, este pode ser um ensejo para que compreendamos mais sobre esta importante área do globo, sabendo quais soluções podem ser duradouras, realistas e, acima de tudo, justas para uma Ucrânia que sobreviveu a tantos traumas históricos e que, ainda assim, segue firme e resoluta na busca pelo seu próprio destino.


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Referências das imagens


Perry-Castañeda Library Map Collection - Ukraine Maps. S/D. Disponível em https://maps.lib.utexas.edu/maps/ukraine.html. Acessado em 10 de março de 2022.


President Biden [@POTUS] (setembro de 2021). In my visit ... democratic values. [Tweet]. Twitter. Disponível em https://twitter.com/POTUS/status/1433178146224881668/photo/1. Acessado em 10 de março de 2022.


Wikimedia Commons contributors. 2016. "File:Principado de Quieve-pt.svg," Wikimedia Commons, the free media repositor. Disponível em https://commons.wikimedia.org/w/index.php?title=File:Principado_de_Quieve-pt.svg&oldid=606471933. Acessado em 10 de março de 2022.


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